quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

O HOMEM QUE INVENTOU ZÉ LIMEIRA...

Foto/Web
ORLANDO TEJO E O AGIOTA





Luiz Berto (*)



Era manhã de segunda-feira e Orlando Tejo invadiu minha sala num
aperreio que não era de seu costume.
- Berto, tô encalacrado.
Não sei se vocês sabem, mas Orlando Tejo é o sujeito mais calmo e
descansado desse mundo, incapaz de se aperrear até dentro de uma casa em
chamas. Mas naquela manhã, o homem estava mais agoniado do que bacorinho
em caçuá.
A tranqüilidade habitual, emoldurada pelas serenas baforadas no
cachimbo, fora substituída por um avexamento que, francamente, deixou-me
curioso. E largou o seu problema sem mais demoras:
- É o seguinte: o novo gerente da Caixa Econômica é meu leitor e se
tornou meu amigo. Assumiu a agência e me deu um cheque especial na
sexta-feira. Resultado: já estourei o limite em trinta mil cruzeiros neste
fim-de-semana.
Conhecedor da total inabilidade de Orlando para gerir suas finanças,
para mim não foi surpresa o estouro no limite do cheque especial.
Surpreendente era a velocidade com que isso se dera. Recebera o cheque na
sexta-feira e na segunda já estava pendurado. Em verdade, suas habilidades
aritméticas limitavam-se à soma das mais alegres lembranças, à subtração
de
tristezas, à multiplicação da imensa legião de amigos e à divisão de uma
ternura e de um lirismo que só mesmo pessoas encantadas como Tejo estão
autorizadas a ter.
Expliquei-lhe que estava duro e não poderia ajudá-lo no momento.
Estava sendo tão franco quanto, com a mesma franqueza, lhe arranjaria
imediatamente a miserável quantia, caso a tivesse, para não vê-lo naquele
sufoco. Funcionário público só vê a cor do dinheiro no fim do mês e, por
infelicidade, estávamos ainda no início da segunda quinzena. Tentei
explicar-lhe isso com tranqüilidade, mas ele parecia insensível a qualquer
argumento.
- Mas eu não posso é ficar desmoralizado perante o gerente, que é
meu conterrâneo da Paraíba e me deu o cheque especial em confiança, por amor aos
meus escritos. Um admirador, em resumo. Vai ser muito chato...
Expliquei-lhe que pessoalmente não podia fazer nada. Mas lembrei-lhe
que, como em toda boa repartição pública, a Câmara tinha o seu agiota de
plantão para socorrer os desesperados naquelas precisões agoniosas. O anjo
da guarda dos necessitados, acudidor de precisões prementes, tão
injustamente malhado pelas pessoas gradas, mas capaz de salvar um vivente
de
um sufoco sem fazer fichas, preencher cadastros, telefonar para o SPC ou
exigir promissórias registradas em cartório. E dei a indicação ao Tejo:
- É só você procurar o Canindé.
Meu amigo João Canindé Tolentino Ribeiro entrou nessa história como
Pilatos entrou no Credo. Tão lascado quanto qualquer um de nós, apenas
estabelecia o contato entre o agiota e os possíveis fregueses, não
ganhando nada com isso, salvo o fato de se beneficiar com um juro mais baixo quando
também precisasse de dinheiro. Orlando Tejo não sabia quem era Canindé,
mas já tratou-o com uma familiaridade que era bem do seu estilo.
- Então ligue logo para esse filho-da-puta desse Canindé, e diga que
eu preciso de trinta.
Liguei para Canindé e ele disse que só poderia dar a resposta de
tarde. Estávamos ainda no começo da manhã. Tejo não gostou mas teve que se
conformar e, logo após o almoço, já estava de novo na minha sala à espera
de notícias. Francamente, nunca lhe vira tão agoniado.
- Ligue logo para esse filho de uma égua, pelo amor de Deus.
Canindé mandou dizer que, se o dinheiro saísse, só sairia no dia
seguinte. terça-feira. Transmiti o recado ao Tejo e ele desesperou-se.
- Explique a esse filho-da-puta que desse jeito vai ser tarde
demais. Os cheques que emiti devem entrar hoje à noite.
Desolado com o drama do meu amigo, acompanhei com o olhar a sua
saída nervosa, pitando furiosamente o cachimbo e maldizendo a sorte. A aura de
lirismo que marcava sempre sua figura estava seriamente arranhada pela
agonia que transpirava dos seus poros. Pobre Tejo, necessitado de trinta
neste vasto mundão de meu Deus e ninguém para acudi-lo...
No dia seguinte, quando cheguei à minha sala, já o encontrei de
plantão, sorrindo, esperançoso.
- Acabei de me informar no banco: nenhum cheque entrou ainda. Ligue
logo para esse miserável desse Canindé.
Liguei. Canindé informou que só à tarde. Transmiti a informação ao
Tejo.
- Assim não dá! Esse filho-da-puta quer me matar.
Na primeira hora da tarde volta Tejo avexado.
- Ainda não entrou cheque nenhum. Ligue de novo.
Liguei e Canindé disse para ligar dai a meia hora. Transmiti a
informação. Tejo deu uma puxada no cachimbo e caminhou um pouco pela sala
sem falar nada. Ficou de costas para mim, olhando um ponto indefinido na
parede em frente. Sentou-se numa poltrona.
E, então, baixou o santo: Tejo ficou calmo de repente, me pediu uma
folha de papel e começou a rabiscar. Eu acompanhava com um rabo-de-olho e
procurava não perturbar, pois sabia que ele estava em pleno processo de
criação. A mão corria devagar pelo papel e, de vez em quando, ele fazia
pequenas pausas como se estivesse conferindo o que já havia escrito.
Estava tranqüilo e era outro homem, bem diferente daquele que há poucos instantes
necessitava desesperadamente de trinta.
Levantou-se e me passou umas folhas naquela sua caligrafia miserável
que eu já estava habituado a decifrar. A letra de Tejo, qual moderna Pedra
da Roseta, exige as habilidades de um novo Champollion para trazê-la ao
entendimento dos mortais comuns. Comecei a ler e me dei conta da
preciosidade que tinha em mãos. Aquilo, realmente, era uma obra de Tejo e
ali estava o seu espírito paraibano, nordestino, poético, moleque,
imprevisível por inteiro. Dar uma trégua ao aperreio para parir um negócio
daqueles, só mesmo vindo dele.
Para se entender o acontecido, vale ressaltar que a história se
passava na Câmara dos Deputados, cujo presidente, à época, era o Deputado
Flávio Marcílio e que Delfim Netto era o então Ministro da Fazenda. Um
tempo tão da porra que ninguém jamais será capaz de esquecer... Vou transcrever
do jeito que ele me deu:



LOUVAÇÃO A CANINDÉ


Estando sem um tostão
E me encontrando bem perto,
Fui procurar Luiz Berto
Berto disse: "Meu irmão,
Eu também queria até
Fazer um querrequequé
Daquele que o diabo pinta
Para ver se arranco trinta
Do bolso de Canindé.

E toca a telefonar
E Canindé a correr,
Mas não pôde se esconder
E teve que tapear:
"Pela manhã não vai dar,
Porque de tarde é que é
Bom para a coisa dar pé.
Aguarde, portanto, amigo".
Berto ficou de castigo
Esperando Canindé.

E eu que necessitava
Também da mesma quantia
Me fiei nessa franquia
Que Canindé propalava
Quando eu menos esperava
O safado, de má fé,
Filho de puta ralé,
Disse que hoje não tem nada...
Ah! uma foice amolada
No chifre de Canindé.

Eu já podia notar
E mudar de interesse
Que um cabra com um nome desse
Não poderia prestar.
Entretanto, vou esperar
Até amanhã com fé.
Se ele me deixar a pé,
Juro por Nossa Senhora:
Corto de pau uma tora
E vou matar Canindé.

O cabra fuma e não traga
Faz do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio
Que não demite esta praga?
Ao menos dava-se a vaga
Pra um sujeito de fé,
Já que esse indivíduo é
Um tratante e delinqüente
Haja chumbo grosso e quente
No rabo de Canindé.

Por capricho do destino
De Satanás ou Deus Brama,
O bicho também se chama
Coisa e tal e Tolentino,
Doido, avarento e mofino,
Não conhece a Santa Sé,
Faz da cola o seu rapé,
Vive da desgraça alheia,
Devia estar na cadeia
Esse tal de Canindé.

Não sei como Luiz Berto
Este escritor inspirado,
Toma dinheiro emprestado
A um ladrão tão esperto,
Que representa um deserto
De trabalho, amor e fé,
Que anda de marcha ré
Pela estrada da virtude
E além de covarde e rude
Se assina por Canindé.

Antes quero outro "pacote"
Desemprego, moratória,
Ver Delfim contar história,
Comer carne de caçote,
Levar chumbo no cangote,
Me abraçar com jacaré,
Beber caldo de chulé,
Dar o rabo a marinheiro,
Do que tomar um cruzeiro
Emprestado a Canindé.


Corri para a máquina de escrever a fim de botar em letra de forma a
tradução dos garranchos e, quando comecei a datilografar, o telefone
tocou. Fiquei incomodado com o toque da campainha. Atendi a contragosto , com a
esperança de que a conversa fosse breve. Era o Canindé.
- Diga ao seu amigo que o dinheiro saiu. Pode vir apanhar.
Ai eu ri gostoso! Depois daquela "louvação", eu queria ver qual a
reação do meu amigo diante da liberação do dinheiro. Acabaram-se os
aperreios. O mundo voltava ao normal e tornava a correr nos eixos. Dei a
notícia ao Tejo e ele me olhou morrendo de alegria. Parecia um menino.
- Saiu? Então me dê ai outro papel que eu vou escrever de novo.
Mandei alguém ir buscar o dinheiro enquanto Tejo se ajeitava num
canto
e começava a escrever novamente. Parece que a boa noticia fazia-o escrever
mais ligeiro. A caneta deslizava sem interrupções sobre o papel. Até as
baforadas do cachimbo boiavam coloridas. Olhou a sua obra, deu um sorriso
maroto e me passou a papelada. Saiu o seguinte:


NOSSO AMIGO CANINDÉ


Um sujeito despeitado,
Desses de baixa maré,
Inventou que Canindé
É um canalha safado.
Eu fiquei preocupado
Com a informação ralé,
Porém não perdi a fé
Em quem merece louvores...
E haja palmas e haja flores
Na fronte de Canindé.

Tenho dito e sustentado
(Todo mundo sabe disso)
Que na Câmara, esse cortiço,
Há um cidadão honrado,
Pai de família extremado,
Homem de bem e de fé!
O Papa já disse até
Padre Cícero em Juazeiro
E em Brasília, Canindé.

Sei que o Papa tem razão,
Mas ninguém quer saber disto.
Se já falaram de Cristo,
Que se dirá de um cristão
Porém a fofoca não
Atinge um homem de fé.
E se eu descobrir quem é,
Meto a mão no pé do ouvido
Do sem-vergonha enxerido
Que falar de Canindé.

Canindé - nome decente!
Tolentino - ô nome macho!
Ribeiro - lindo riacho
Que mata a sede da gente!
Honrado, amigo e valente,
Subiu da glória o sopé...
A Virgem de Nazaré
Já lhe envolveu com seu manto,
Por isso um caminho santo
Vai trilhando Canindé.

Canindé pra ser beato
Só falta mesmo a batina,
Pois tem vocação divina
Pureza, fé e recato!
Por isso ele é o retrato
Mais fiel de São José
E já se comenta até
Que Frei Damião Bozzano
Sugeriu ao Vaticano
Canonizar Canindé.

Mas sabem por que razão
Já querem canonizá-lo?
É por causa de um estalo
Que recebeu nosso irmão
Lá nas margens do Jordão,
Ao lado de São Tomé,
Quando dava cafuné
Numa velhinha doente
E morreu a penitente
Nos braços de Canindé.

Nesse chão onde ele pisa,
Por ser grande patriota,
Se faz até de agiota
Pra ajudar a quem precisa.
Mas não comercializa
A sua alma de fé!
Jamais ganhou um café
Pelo dinheiro que empresta...
A caridade é uma festa
Para a alma de Canindé.

Santo Agostinho, dos santos
Foi o mais puro entre os ermos
Que consolava os enfermos
E lhes enxugava os prantos.
Obrava milagres tantos,
Pela pureza e a fé
Pois acreditava até
Em fala de passarinho.
Mas sabem? Santo Agostinho
É pinto pra Canindé.

E mais não disse e nem lhe foi perguntado.


(*) Luiz Berto é "cobra criada" : (http://www.malvtec.com.br/)

-
"Especialista em generalidades, peruador sem compromisso, dono de um currículo sem qualquer saliência digna de nota, autor de uma obra perfeitamente dispensável, azeitador do eixo do sol, ensacador de fumaça, carnavalesco e cachacista, Papa da Igreja Católica Apostólica Sertaneja
-
.OBRAS:
-
A PRISÃO DE SÃO BENEDITO - Crônicas Primeira edição: Brasília, 1982, Ed. Independência Segunda edição: Palmares, 1987, Ed. Bagaço Terceira edição: Recife, 1991, Ed. Bagaço Quarta edição: Recife, 1997, Ed. Bagaço
O ROMANCE DA BESTA FUBANA - Romance Primeira edição: Belo Horizonte, 1984, Ed. Itatiaia Segunda edição: Recife, 1994, Ed. Bagaço Terceira edição: Recife, 2004, Ed. Bagaço
A SERENATA - Novela Primeira edição: Porto Alegre, 1986, Ed. Mercado Aberto Segunda edição: Recife, 2005, Ed. Bagaço
NUNCA HOUVE GUERRILHA EM PALMARES - Romance Porto Alegre, 1987, Ed. Mercado Aberto
MEMORIAL DO MUNDO NOVO – Romance Recife, 2001, Ed. Bagaço
PEIBUFO, ETC. E COISA E TAL - Comédia em um ato Levada ao palco em Palmares-PE, Recife-PE, Belo Horizonte-MG e Brasília- DF, 1989.
HISTÓRIAS QUE NÓS GOSTAMOS DE CONTAR – Crônicas Em preparo.
CEM OBRAS-PRIMAS DA POESIA RUIM – Coletânea
Em preparo
* * *
Participação no International Writing Program da Universidade de Iowa, Estados Unidos, a convite do governo americano.
Participação no International Festival of Authors, Toronto, Canadá.
Prêmio Literário Nacional do Instituto Nacional do Livro/MEC, categoria Obra Publicada (O Romance da Besta Fubana), São Paulo
Prêmio Guararapes da União Brasileira de Escritores (O Romance da Besta Fubana), Rio de Janeiro.
O Romance da Besta Fubana ou Festa e Utopia no Interior do Nordeste, dissertação apresentada pela Professora Ilane Ferreira Cavalcante ao Curso de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para a obtenção do Grau de Mestre em Letras, área de concentração em Literatura Comparada , em junho de 1996.

Um comentário:

Anônimo disse...

O texto "Orlando Tejo e o Agiota" é de minha autoria, e nao de Luiz Humberto de Melo, conforme consta nesta página.

Grato

Luiz Berto
bertofilho@terra.com.br